O documentário “Encontro com Milton
Santos - O mundo global visto do lado de cá”, do cineasta Sílvio Tendler, é
conduzido por uma entrevista com o geógrafo e intelectual baiano Milton Santos,
gravado poucos meses antes da sua morte.
No documentário é feito um recorte
singular sobre a globalização, a sociedade de consumo, as divisões que esta
sociedade se encontra, o território, os efeitos famigerados da globalização, as
crises que esta promove, as barreiras físicas e simbólicas postas pelo
capitalismo como efeito da globalização, o papel da mídia e as revanches organizadas
por suas maiores vítimas.
A crise se
estabelece e Milton Santos faz este alerta quando afirma que: “O consumo é o
grande fundamentalismo”. E o século 20 retrata bem esse contexto. Como foi dito no documentário,
o estado do bem-estar social aliado ao humanismo foi substituído pelo consumo
exacerbado, pela construção de uma cultura voltada para o individualismo.
Milton Santos é sagaz quando apresenta as três vertentes da globalização no mundo: a globalização como fábula: tal qual é posta/ como querem que a
vejamos; a globalização da perversidade:
tal qual ela é e uma outra globalização possível para o mundo: mais justa, mais fraterna.
No decorrer do documentário é
apresentada uma série de acontecimentos no mundo inteiro que focam a atenção
nas causas que esta sociedade capitalista centraliza, a fim de obter benefícios
próprios em detrimento da desorganização do território, da apropriação de bens
comuns e do uso privado de riquezas mundiais por parte de uma minoria.
Apropriações indevidas que geraram tensões por tentar deter grandes bens nas
mãos de pequenos grupos, enquanto se assolava o estado de miséria e a sociedade
crônica para todo o resto.
Ao invés de o intenso
processo tecnológico buscar mecanismos para reduzir a discrepância,
especialmente econômica, entre os países ricos e pobres, fez por aumentar esse
número. Decerto, o mundo se dividia em três processos de globalização
distintos: um com a abordagem dos países do norte, isto é, as potências
globais, que emitem ideias transplantadas do capitalismo selvagem, voltado para
a manutenção de suas hegemonias. Outro processo, que apresenta deficiências,
isto é, uma busca para se alicerçar no cenário mundial. E um terceiro
indefinido, sem perspectivas de iniciação.
O Consenso de
Washington, foi um movimento em prol do planejamento e expansão dos projetos de
globalização. Este apresentava ideias como a privatização de empresas e juros
altos para o aumento de investimentos estrangeiros. Porém, esse trabalho não se
irradiou de forma igualitária em todos os locais. Em países menos providos
financeiramente, o que se viu foi revolta, devido a uma crise por conta da
privatização, e, como consequência, muitos desempregados. Nesse sentido, Milton
Santos comenta: “O processo de globalização apenas trabalha na solidificação do
lado econômico e as grandes empresas não tem responsabilidade moral e social
com alguns países, de forma a desorganizá-los.
A tentativa de privatização da água
potável em Cochabamba, Bolívia em 2000 e o 3º Fórum Mundial da Água em Kioto,
Japão em 2003, foram eventos que chamaram a atenção do mundo para os efeitos da
famigerada globalização frente à sociedade capitalista na qual vivemos.
Em meio à crise financeira , ao
estado de caos que se encontra, tem-se o crescimento crônico do desemprego, a
fome e o desabrigo que cada vez mais se alastra. Os baixos salários, o estado
de mendicância e miséria em que as pessoas são postas, crescem diretamente
proporcional ao que chamamos do segundo efeito da globalização, ou globalização
da perversidade, em que a pobreza é vista com naturalidade.
Enquanto isto, a sociedade se divide
em dois grandes grupos; “o grupo dos que não comem e o grupo dos que não dormem
com receio do grupo dos que não comem.” (José de Castro). E Milton Santos ainda
afirma que “produzimos mais comida do que consumimos”. E esta sociedade
subdividida permanece criando barreiras de segregação. Sejam estas barreiras
físicas – Muralha da China e Muro de Berlim – ou barreiras simbólicas – que é a
que a Europa mantém contra os estrangeiros e clandestinos, a fronteira entre o
México e o EUA, onde a migração não é desejada.
Adiante os acontecimentos tem a mídia
como a fábula da globalização, que assume o papel de intermediação diante
desta, pois controla a interpretação do que acontece no mundo, em que não há
produção excessiva de notícias, e sim de ruídos.
Contudo, a revanche é feita. Os
grupos que são massacrados e postos à margem deste processo atroz de
desenvolvimento global ganham força com seus movimentos e buscam reverter a
ordem de tudo que está posto. A África e a América Latina são os gigantes
despertando para os problemas que lhe são causados, e que não se promovem por
quem lá habita e sim pelos grandes “olheiros” e investidores de mercado que
ambicionam ganhar espaço para depois explorá-lo. E não há melhor modo de fazer
isto, senão criando confrontos entre os grupos para adquirirem espaços de
dominação.
Com o despertar destes grandes polos
de desenvolvimento, os espaços cada vez mais são tomados e causam incômodo. Daí
tem os olhares do norte x os olhares do sul, que propicia a observação da
diferenças de polos econômicos em blocos capitalistas distintos; os que
produzem e os que consomem. Numa fala mais íntima do que possa representar os
grupos que tem e os grupos que não tem moeda de consumo numa sociedade que
impera a globalização da perversidade.
E Milton Santos afirma que: “Não há
cidadania no Brasil. A classe média não requer direitos, e sim privilégios.” O
estado de cidadania nos é roubado pelo jogo de interesse no qual esta classe
promove. Mas Milton Santos é perspicaz ao frisar que estas ações não são
promovidas de modo estanque pelo Estado, e afirma que: “As fontes criadoras de
diferenças e desigualdades são mais fortes que as ações do Estado. Para isto, é
necessário um Estado socializante.”
Diante deste Estado socializante a
ser construído há também uma sociedade e Milton Santos é muito feliz quando diz
que esta sociedade na qual vivemos ainda é um ensaio; ela nunca existiu.
Sabe-se que a luta provém de vários
locais. De acordo com Milton Santos, o remédio para reverter esse quadro global
encontra-se na junção entre educação e informação, pois só quem compreende os
moldes do processo é capaz de proporcionar soluções claras e objetivas para a
crise de social, política e econômica de inúmeras nações. A inclusão digital é
uma ferramenta de imensurável importância para a conquista de uma verdadeira
democracia.
Por fim, cada cidadão
deve estar ciente de que não está sozinho no mundo, isto é, existe uma
interdependência entre as pessoas, assim como entre os países. Portanto, a
consciência, aliada às lutas sociais, como dizia Ihering, é que consolidarão os
direitos em sua verdadeira essência.
Milton Santos, no seu livro: Por uma outra globalização, afirma
acreditar que esse mundo novo anunciado não será uma construção de cima para
baixo, mas uma edificação cuja trajetória vai se dar de baixo para cima.
Segundo ele, graças aos processos fulminantes da informação, o mundo fica mais
perto de cada um, não importa onde cada um esteja. O resto da humanidade parece
estar próximo. Criam-se para todos a certeza e depois a consciência de ser
mundo e estar no mundo. O próprio mundo a instala nos lugares e sobretudo nas
grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de
todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas que
ao mesmo tempo se chocam e colaboram na produção renovada do entendimento e da
crítica da existência. Assim o cotidiano de cada um se enriquece pela
experiência própria e pela do vizinho, tanto para realizações atuais como pelas
perspectivas de futuro. Para ele as dialéticas da vida nos lugares, agora mais
enriquecidas, são paralelamente o caldo de cultura necessário à proposição e ao
exercício de uma nova política.
Ainda sobre o
documentário:
Partindo da imagem para o homem do
nosso século, segue uma linha cadencial entre documentos, entrevistas e
exposição no estilo jornalístico com narração de alguns atores.
É utilizada uma linguagem acessível,
que embora dotada de erudição, explica conceitos essenciais para se entender a
sequência como no caso da definição sobre o que foi o consenso de Washington.
Porém, muita coisa fica para o espectador pesquisar posteriormente.
Não há questões abertas para que haja
um maior exercício de pensamento.
Os não – cidadãos que formam a
população brasileira são convidados a ver um mundo que a mídia não mostra. Do
lado de cá, o mundo globalizado passa a ter as suas primeiras cores desbotadas.
Uma semente de inquietação é plantada assim que o filme termina.
Referências:
SANTOS, Milton. Por uma outra globalizacao. Rio de Janeiro: Record. 2000.
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