segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Filme: Encontro com Milton Santos

O documentário “Encontro com Milton Santos - O mundo global visto do lado de cá”, do cineasta Sílvio Tendler, é conduzido por uma entrevista com o geógrafo e intelectual baiano Milton Santos, gravado poucos meses antes da sua morte.
No documentário é feito um recorte singular sobre a globalização, a sociedade de consumo, as divisões que esta sociedade se encontra, o território, os efeitos famigerados da globalização, as crises que esta promove, as barreiras físicas e simbólicas postas pelo capitalismo como efeito da globalização, o papel da mídia e as revanches organizadas por suas maiores vítimas.
A crise se estabelece e Milton Santos faz este alerta quando afirma que: “O consumo é o grande fundamentalismo”. E o século 20 retrata bem esse contexto. Como foi dito no documentário, o estado do bem-estar social aliado ao humanismo foi substituído pelo consumo exacerbado, pela construção de uma cultura voltada para o individualismo.
Milton Santos é sagaz quando apresenta as três vertentes da globalização no mundo: a globalização como fábula: tal qual é posta/ como querem que a vejamos; a globalização da perversidade: tal qual ela é e uma outra globalização possível para o mundo: mais justa, mais fraterna.
No decorrer do documentário é apresentada uma série de acontecimentos no mundo inteiro que focam a atenção nas causas que esta sociedade capitalista centraliza, a fim de obter benefícios próprios em detrimento da desorganização do território, da apropriação de bens comuns e do uso privado de riquezas mundiais por parte de uma minoria. Apropriações indevidas que geraram tensões por tentar deter grandes bens nas mãos de pequenos grupos, enquanto se assolava o estado de miséria e a sociedade crônica para todo o resto.
Ao invés de o intenso processo tecnológico buscar mecanismos para reduzir a discrepância, especialmente econômica, entre os países ricos e pobres, fez por aumentar esse número. Decerto, o mundo se dividia em três processos de globalização distintos: um com a abordagem dos países do norte, isto é, as potências globais, que emitem ideias transplantadas do capitalismo selvagem, voltado para a manutenção de suas hegemonias. Outro processo, que apresenta deficiências, isto é, uma busca para se alicerçar no cenário mundial. E um terceiro indefinido, sem perspectivas de iniciação.
O Consenso de Washington, foi um movimento em prol do planejamento e expansão dos projetos de globalização. Este apresentava ideias como a privatização de empresas e juros altos para o aumento de investimentos estrangeiros. Porém, esse trabalho não se irradiou de forma igualitária em todos os locais. Em países menos providos financeiramente, o que se viu foi revolta, devido a uma crise por conta da privatização, e, como consequência, muitos desempregados. Nesse sentido, Milton Santos comenta: “O processo de globalização apenas trabalha na solidificação do lado econômico e as grandes empresas não tem responsabilidade moral e social com alguns países, de forma a desorganizá-los.
A tentativa de privatização da água potável em Cochabamba, Bolívia em 2000 e o 3º Fórum Mundial da Água em Kioto, Japão em 2003, foram eventos que chamaram a atenção do mundo para os efeitos da famigerada globalização frente à sociedade capitalista na qual vivemos.
Em meio à crise financeira , ao estado de caos que se encontra, tem-se o crescimento crônico do desemprego, a fome e o desabrigo que cada vez mais se alastra. Os baixos salários, o estado de mendicância e miséria em que as pessoas são postas, crescem diretamente proporcional ao que chamamos do segundo efeito da globalização, ou globalização da perversidade, em que a pobreza é vista com naturalidade.
Enquanto isto, a sociedade se divide em dois grandes grupos; “o grupo dos que não comem e o grupo dos que não dormem com receio do grupo dos que não comem.” (José de Castro). E Milton Santos ainda afirma que “produzimos mais comida do que consumimos”. E esta sociedade subdividida permanece criando barreiras de segregação. Sejam estas barreiras físicas – Muralha da China e Muro de Berlim – ou barreiras simbólicas – que é a que a Europa mantém contra os estrangeiros e clandestinos, a fronteira entre o México e o EUA, onde a migração não é desejada.
Adiante os acontecimentos tem a mídia como a fábula da globalização, que assume o papel de intermediação diante desta, pois controla a interpretação do que acontece no mundo, em que não há produção excessiva de notícias, e sim de ruídos.
Contudo, a revanche é feita. Os grupos que são massacrados e postos à margem deste processo atroz de desenvolvimento global ganham força com seus movimentos e buscam reverter a ordem de tudo que está posto. A África e a América Latina são os gigantes despertando para os problemas que lhe são causados, e que não se promovem por quem lá habita e sim pelos grandes “olheiros” e investidores de mercado que ambicionam ganhar espaço para depois explorá-lo. E não há melhor modo de fazer isto, senão criando confrontos entre os grupos para adquirirem espaços de dominação.
Com o despertar destes grandes polos de desenvolvimento, os espaços cada vez mais são tomados e causam incômodo. Daí tem os olhares do norte x os olhares do sul, que propicia a observação da diferenças de polos econômicos em blocos capitalistas distintos; os que produzem e os que consomem. Numa fala mais íntima do que possa representar os grupos que tem e os grupos que não tem moeda de consumo numa sociedade que impera a globalização da perversidade.
E Milton Santos afirma que: “Não há cidadania no Brasil. A classe média não requer direitos, e sim privilégios.” O estado de cidadania nos é roubado pelo jogo de interesse no qual esta classe promove. Mas Milton Santos é perspicaz ao frisar que estas ações não são promovidas de modo estanque pelo Estado, e afirma que: “As fontes criadoras de diferenças e desigualdades são mais fortes que as ações do Estado. Para isto, é necessário um Estado socializante.”
Diante deste Estado socializante a ser construído há também uma sociedade e Milton Santos é muito feliz quando diz que esta sociedade na qual vivemos ainda é um ensaio; ela nunca existiu.
Sabe-se que a luta provém de vários locais. De acordo com Milton Santos, o remédio para reverter esse quadro global encontra-se na junção entre educação e informação, pois só quem compreende os moldes do processo é capaz de proporcionar soluções claras e objetivas para a crise de social, política e econômica de inúmeras nações. A inclusão digital é uma ferramenta de imensurável importância para a conquista de uma verdadeira democracia.
Por fim, cada cidadão deve estar ciente de que não está sozinho no mundo, isto é, existe uma interdependência entre as pessoas, assim como entre os países. Portanto, a consciência, aliada às lutas sociais, como dizia Ihering, é que consolidarão os direitos em sua verdadeira essência.
Milton Santos, no seu livro: Por uma outra globalização, afirma acreditar que esse mundo novo anunciado não será uma construção de cima para baixo, mas uma edificação cuja trajetória vai se dar de baixo para cima. Segundo ele, graças aos processos fulminantes da informação, o mundo fica mais perto de cada um, não importa onde cada um esteja. O resto da humanidade parece estar próximo. Criam-se para todos a certeza e depois a consciência de ser mundo e estar no mundo. O próprio mundo a instala nos lugares e sobretudo nas grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de todos os quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas que ao mesmo tempo se chocam e colaboram na produção renovada do entendimento e da crítica da existência. Assim o cotidiano de cada um se enriquece pela experiência própria e pela do vizinho, tanto para realizações atuais como pelas perspectivas de futuro. Para ele as dialéticas da vida nos lugares, agora mais enriquecidas, são paralelamente o caldo de cultura necessário à proposição e ao exercício de uma nova política.
Ainda sobre o documentário:
Partindo da imagem para o homem do nosso século, segue uma linha cadencial entre documentos, entrevistas e exposição no estilo jornalístico com narração de alguns atores.
É utilizada uma linguagem acessível, que embora dotada de erudição, explica conceitos essenciais para se entender a sequência como no caso da definição sobre o que foi o consenso de Washington. Porém, muita coisa fica para o espectador pesquisar posteriormente.
Não há questões abertas para que haja um maior exercício de pensamento.
Os não – cidadãos que formam a população brasileira são convidados a ver um mundo que a mídia não mostra. Do lado de cá, o mundo globalizado passa a ter as suas primeiras cores desbotadas. Uma semente de inquietação é plantada assim que o filme termina.

Referências:

SANTOS, Milton. Por uma outra globalizacao. Rio de Janeiro: Record. ‎2000.